23 de junho – por Soraya Belusi
“Uma fé enorme em qualquer coisa”, diz a personagem-atriz-narradora de “Sobre-viventes”, último trabalho a entrar no palco desta segunda noite do 12 º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. A frase, proferida por Dayane Lacerda, pode nos servir como uma espécie de síntese para buscar uma interpretação sobre as escolhas formais das cenas que integraram a programação de ontem.
A primeira cena a se apresentar foi “Dê uma Última Olhada nas Coisas Belas”, com direção de Cynthia Paulino. A equipe do trabalho é formada por “antigos” parceiros de pesquisa, como Marina Arthuzzi e Paolo Mandatti. Isso diz muito do que se vê em cena. O “grupo” traz neste trabalho de 15 minutos algumas das questões que já vem investigando de maneira pontual em outras obras, o que pode ser entendido como a busca de uma linguagem (“uma fé enorme em qualquer coisa”).
É a partir de elementos ritualísticos (como o canto e a lavagem do corpo) e de figuras mitológicas (representações do feminino, com seus seios e sexos, e suas múltiplas facetas) que a encenação constrói o seu discurso. É num tempo espaço atemporal, indefinido, que esse discurso – muitas vezes referencial a mulheres que refletiram sobre suas condições de abandono, solidão e desespero (Virgínia, Clarice?) –, concretiza-se.
Há um esmero na construção da forma, tanto no que diz respeito à cena, quanto nas palavras. Mas a escolha pelo tom literário pode talvez explicar o que impede que, de alguma maneira, que o discurso deixe de ser apenas formal e agradável aos ouvidos para construir sentido, ocupar a sala do teatro, afetar e penetrar o público.
A segunda cena foi beber no anti-herói nacional, na figura de Macunaíma, para construir uma reflexão sobre a miséria humana e busca de sobrevivência. É com as referências mitológicas indígenas que o ator Milton Aires, também responsável pela pesquisa e criação do trabalho, dialoga na construção de “Makunaíma: Em Árvore do Mundo e a Grande Enchente”. Milton opta pela investigação de um discurso construído corporal e vocalmente, com potência e vitalidade, mas sem o desenho cuidadoso de cada intenção e imagem, cada grunhido ou gromelô, para que a plateia possa, junto com ele, entrar nesse universo de “embate” entre homem, vida e natureza. A dramaturgia se desenvolve de maneira um tanto confusa, o que é reforçado pela não-clareza das intenções, gestos e/ou ações.
Na sequência, foi a vez de “Conversa Séria de Calcinha e Soutien” ganhar o palco. O trabalho, dirigido por João Valadares, escolhe a máscara como linguagem corporal e vocal na atuação do elenco. As referências parecem partir mesmo das máscaras expressivas da commedia Dell arte (embora reinterpetadas em cor e forma) e a seus tipos (o capitão, o doutor, a donzela…). A questão é que, se a escolha formal de fato foi essa, o trabalho de máscaras merece ser aprofundado, trabalhado, assumido. É preciso que essa “forma” sugerida pelo uso da máscara vá além, torne-se orgânica, dê ainda mais vida ao “tipo”, traga estados e relações diferenciadas.
Como base para a dramaturgia, a discussão entre o que é vida e o que já deixou de ser ou existe depois dela, o que é crueldade e o que é amor, entre o que sou eu e o que é o outro, uma espécie de releitura de questões que tanto inspiraram Sartre e seu “Entre Quatro Paredes” (referência assumida pelo próprio coletivo de criadores em conversa com a imprensa). Neste fragmento de 15 minutos, todas essas questões talvez precisassem ser tratadas com um pouco mais de clareza e organização dramatúrgica para um entendimento mais “redondo” dos pontos que o trabalho pretende tocar.
“Uma fé enorme em qualquer coisa”. Está aí algo que esse trio de parceiras-criadoras (Marina Arthuzzi, Marina Viana e Mariana Blanco) realmente compartilha. Integrantes da Cia. Primeira Campainha, as três vêm em todos os seus trabalhos utilizando elementos, temáticas e escolhas formais recorrentes, uma espécie de afirmação de identidade, marcada pelo humor, pela capacidade de construir e desconstruir realidades cênicas, pela discussão sobre sexualidade, relações pessoais e amorosas, um turbilhão de informações e citações intelectuais batidas, neste caso literalmente, em um liquidificador.
“Sobre-viventes” é trabalho de voltagem 220, na quinta marcha, no volume máximo, como tudo o que essas criadoras tocam. Consegue, dramaturgicamente, trafegar entre camadas distintas sem esforço, passando sem sobressaltos pelo discurso do personagem, para o do ator, para o do narrador, e, assim, ciclicamente. O trabalho tem uma escolha pela anarquia que, em si, contém uma ordem muito particular, destilando acidez pop-punk-rock pelos poros (talvez em exagero em momentos como a invasão do palco numa espécie de catarse coletiva).
É no limite que “Sobre-viventes”, assim como os outros estudos-exercícios-espetáculos, se instala (e é isso que o torna especial). Entre o que já foi feito e o que de novo pode aparecer, entre a construção de um pensamento e uma verborragia cheia de referências, de construir a poesia em cena e transformá-la, quando o teatro realmente acontece, em “beleza” e emoção (talvez, uma pitada de jazz nesse concerto do Mettalica!). Esses são os momentos mais potentes do trabalho. É com fome, sede, gana, irresponsabilidade e confiança que o grupo mostra sua “fé enorme” no que leva para a cena. Muitas vezes, a ponto de “deixar o público sem ar”… talvez, falte só respirar um pouquinho…